L'esprit des lieux


A engrenagem partida (Luísa Soares de Oliveira)

Um lápis desenha sozinho numa parede branca. Sozinho, é uma maneira de dizer: há um motor de brinquedo ligado, um arame ligado a esse motor, e o lápis atado ao arame. O motor trabalha, o lápis desenha. Desenha na parede.

Ou noutro sítio qualquer, como, por exemplo, uma folha de papel. As instalações de Pascal Nordmann constroem ateliers muito próprios onde os lápis trabalham sozinhos, incessantemente, como se o desenho que é próprio dos artistas (e, já agora, a escrita que é própria dos escritores) não necessitasse de um corpo, um espírito para existirem. Os ateliers, chamemos-lhes assim, possuem tudo o que é necessário: folhas de papel, mesas, cadeiras (maquinas de escrever como as que os escritores usavam antigamente), muitos lápis, mas sobretudo objectos, como os objectos que se guardam sem se saber porquê, e que fazem parte desse arquivo pessoal de formas, cores, cheiros e emoções que todos, artistas ou não, guardamos dentro de nós.

É por isso que uma rosa de papel passa a ser a rosa azul de Novalis, diz o artista.

Por isso, numa casa, nada de mais normal que o artista a assuma como projecção do seu corpo – afinal, a casa foi desde sempre uma das metáforas mais bem conseguidas da identidade própria, ela que se presta sempre a arranjos domésticos e decorativos assentes no gosto, nas projecções e nas necessidades de quem a habita. Para exemplificar esta afirmação a casa de emigrante que alberga o Centro de Artes de S. João da Madeira, construída e dividida ao gosto dos inícios do século XX, presta-se particularmente bem a esta associação. Uma cozinha, um atelier luminoso e duas salas que dão sentido à exposição – intituladas respectivamente “Diplomatie de l’ombre” e “La classe mot” – compartimentam o espaço de exposições em outras tantas funções. Destas, se as duas primeiras são evidentes, as últimas condensam o projecto: a diplomacia faz-se com um amontoado de malas de viagem antigas, a lembrar fotografias bem conhecidas de despojos judeus, e a segunda apresenta-se como uma classe de escola onde o mestre ocupa o lugar de um possível chefe de orquestra. Tudo está bem quando a ordem, a regra, a lei dominam o corpo.

Uma outra vertente bem conhecida dessa imposiçaõ que doma o corpo com a finalidade de o sujeitar ao sistema de produçaõ da riqueza nas sociedades democráticas ocidentais encontra-se na fabrica; e essa associaçáo não escapou ao artista que; grças ao apoio concedido dado a esta iniciativa pela fábrica de lápis Viarco (situada, como que por acaso, num edificio industrial fronteiro ao Centro de Arte de S. João da Madeira), preencheu um corredor da casa com material antigo dessa unidade industrial, mas dando-ilhe a mesma conotação qze já encontrávamos nas restantes salas utilizadas na instalação: a casa substitui o corpo - neste caso, o corpo operário - e este corpo é firnado por máquinas que trabalham, por luzes que se acendem, por composições que funcionam, embora o objectivo desse funcionamento permaneça uma incógnita: serà que ele existe, afinal, ou tudo não concorre para uma despesa de energia sem fim nem propósito? O artista não responde. Por um lado Pascal Nordmann apresenta-nos o lugar da memória, e por outro o lugar da disciplina. No caso desta exposição, a disciplina atravessa um dispositivo que assume quatro vertentes: a escola, a domesticidade e o trabalho artístico como outras tantas versões da vida social. Contudo, a memória, que trespassa todos estes lugares, é também a fonte da desordem, do pauzinho na engrenagem que provoca o desmoronar da mesma lei.

Como sair da lei, quando se está inevitavelmente dentro dela desde que se nasce? Pascal Nordmann responde a esta questão invocando a memória desconhecida de dezenas de ‘objets trouvés’ que habitam cada espaço com instalações de escala desmedida. As malas abrem-se, derramam o seu conteúdo pelo chão, as bonecas mexem-se, os serviços de chá e café parecem prontos a ser postos na mesa, as máquinas de escrever ou calcular esperam quem as trabalhe. Mas quem as trabalha será sempre esse ausente que deixou aqui a gabardina, ali o chapéu, e que pôs a trabalhar o motor que mexe o lápis que desenha ou escreve o signo na superfície branca. A qualquer momento, esperamos que estas máquinas de escrever e desenhar adquiram vida própria, se apropriem das memórias que foram de outros, e lancem a desordem – porque a arte deve ser, antes de mais e desde o seu começo, desordem -, o caos, no meio em que o visitante se move.

Só assim a casa se tornará verdadeiramente corpo. Só assim o visitante, ele que é sempre um intruso e um voyeur da intimidade alheia, poderá usufruir plenamente da exposição.
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